Caro Poeta;
Estou aqui hoje, diante de
você e tenho perguntas. Não sei se podes responder, mas aqui seguem algumas
considerações sobre as quais muito refleti.
Sentado à tua mesa favorita,
com os livros e papel à frente, vejo que rabiscas um poema. Não gostaria de
interrompê-lo, entretanto, é necessário. Tenho apenas este momento para
questionar e contar-te sobre minhas dúvidas.
Nasci 54 anos depois de ti,
mas tuas obras me tomaram por completo. Sempre que vejo um cão, me lembro da
primeira vez que li o título do teu poema “O cão sem Plumas”. Apaixonada por
cães, e muito nova para compreender a metáfora, sorvi tuas palavras rapidamente,
tentando encontrar o cachorro lindo que talvez pudesses ter descrito, mas sem
plumas, sim pelos lindos. Por isso, talvez, eu tenha achado que a obra trataria
de coisas fofas e belas. Mas você mostrou um outro mundo, um outro olhar, e o Cão sem Plumas me apresentou as condições sub-humanas nas
palafitas de Recife e um rio que corria sujo e sem glamour. Suas frases duras,
como bem pediam o tema, me colocaram para sempre a dúvida: porquê unir uma
coisa tão querida e inocente como um cão à um tema tão árido e triste?
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Estas palavras me
despertaram para as tuas tantas outras que descreviam o rio Capibaribe. Rio
que, naquele tempo, eu jamais poderia visualizar, pois se encontrava a milhares
de quilômetros de distância da minha terra e da minha realidade. Mas o cão, ah,
sim! Este eu conhecia, mas não conseguia ligá-lo ao rio, muito menos às plumas
ou à mísera vida que levavam o povo daquela estória.
Algumas coisas, caro poeta,
são difíceis para que os adolescentes compreendam. Mas para aquele sedento de
conhecimento e faminto de significados, a busca pelo sentido pode durar por
muitos anos. Assim foi seguindo a minha vida. Seus poemas, bem como os do seu
amigo Drummond foram tomando mais espaço nas minhas estantes.
Cresci com a Severina, e o
fantasma do cão sem plumas a me rondar, sem piedade. A morte e a vida contada e
cantada milhares de vezes. A Severina aparecia em meus ouvidos e o cão
desplumado na minha mente:
"...E não há melhor
resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina."
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina."
Me fazendo
entender a saga de uma vida. Olhar para as dificuldades que todos temos e para
as mazelas que vivemos. Na porta da minha casa, no sítio do meu pai e nas
fazendas vizinhas, os cães e os rios não possuíam aquela face modorrenta e nem
os olhos de dor e miséria. Eles não conheciam a mulher febril das ostras nem as
águas eram estagnadas.
O meu cão,
sempre alegre e sem preguiça - com rabinho vivo e sem aquela ferrugem do lodo
que encobre os homens e escurece os fundo dos rios – me olhava com olhos nus e
alegres. Nunca com dor e pedindo por vida como aquele rio sem plumas das tuas
letras. O meu cão pulava e corria feliz! Tão diferente daquele desplumado
descrito por ti:
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
E a dúvida,
a esta inimiga! Sempre permanecia. Tua cadeira, Senhor João, esteve vazia por
tantos anos. E também a minha mente. A ausência da tua explicação para tal vida
amaldiçoada seguiu comigo juventude a dentro.
Até que um dia pousei meus olhos no Capiberibe e pude ouvir tuas
palavras sussurrando aquele poema da adolescência. Claro, evidente, que o rio
talvez não fosse o mesmo que inspirou teus versos, mas ouvi claramente uma voz
declamando e derramando as águas e os homens no meu conhecimento.
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Compreendi,
então, o que tuas letras me contavam.
Abri meus
olhos e vi a fruta madura e as moscas das quais falavas. Vi os homens calejados
e a flora suja e estagnada. Aquela visão me falou sobre coisas que eu não
poderia ter inferido apenas lendo os teus versos profundos. Teus versos da
alma, tão espirituais e reais.
Caro
Poeta, com a certeza de que me ouvistes, ainda pergunto: de onde foi
tirada a ideia de um cão desplumado?
E agora
conto-te as novidades, que nem parecem tão novas, pois aquele rio permanece tão sem
plumas do que nunca. E o cão, perdoe-me, todos aqueles cães - que vagueiam e passeiam sem donos e famintos
- são bem mais alegres que o teu rio, teus homens e teus palácios careados.
Acontece que tanto o rio
quanto os cães de pelo espesso, continuam na luta
porque é mais espessa a
vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu voo).
Me despeço agora, deixando o
meu afeto e admiração.
Taís
Morais – Jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não vá embora sem comentar,
Você alimenta estas letras.