Réquiem da saudade

Há exatos três meses eu ajudaria, com certa esperança e muita dor, a aplicar uma dose de quimioterápico, na coluna, da minha mãe.
No dia anterior fora meu aniversário.
Minha irmã caçula levou bolo e salgadinhos ao hospital, para que minha mãe comemorasse o dia mais importante do ano para mim.
Todos sabem que meus aniversários não passam em branco. eu sempre gostei de reunir família e amigos em torno de um bolo para celebrar mais um ano novo.
Minha mãe aceitou comer um pedaço de bolo de chocolate, oferecido com todo amor e dedicação, a cada pequena colherada, pela minha irmã.
Na nossa festa particular, cinco pessoas. Meu irmão Regis, minha incansável tia Rute, Izis, Mamãe e eu.
Ela já não estava enxergando direito, e mesmo sem olhar para a câmera, sorriu para a selfie que Izis tirou. A gente nem imaginava, mas aquele seria seu último sorriso...
Na manhã do dia seguinte, eu cheguei cedo para render minha irmã que passara a noite no hospital. Me aproximei da cama e dei meu bom dia alegre para a dona Geni. Ela deu bom dia, e perguntou-me pelos meus filhos e pelo Sylvio.
Brincando, questionei se ela não queria saber das minhas cachorras. Ela respondeu que sabia que elas estavam bem. Minha mãe não gostava muito de cães. E esse foi um dos embates que tivemos ao longo da vida. da curta vida ao lado dela.
Para animá-la, perguntei se ela iria a Portugal, ficar uns três meses comigo. Ela adorava viajar. Passava meses na Bélgica, com meus primos e aproveitava para conhecer os países e cidades europeias. Professora de História, ela amava passear pelos locais que ela conhecia somente através dos livros.
Ela respondeu que não poderia ir. Não sabia quanto tempo duraria o tratamento. Eu disse que ela poderia tratar-se por lá. A resposta foi negativa. Então, meu coração entristeceu-se. Eu precisava dela...
Disse-lhe que então, eu também não iria. Que ficaria ao seu lado. Muito séria, como ela era, afirmou:
- Você vai, sim.
Sentei-me no sofá e fiquei observando a respiração, as mãos, a pele (que eu invejava), o cabelo e toda aquela mulher, que era tão forte, e naquela momento estava ali tão frágil...
Com uma dor aguda, comprei a passagem para o meu futuro. Quando ela acordou, dei a notícia do dia em que eu iria. Com a ressalva, ela teria que ir me visitar. Ela não sorriu...
Pediu-me para ligar para a Ádila, amiga de muitos anos, que fazia aniversário.
Minha irmã voltou de tarde. Enquanto esperávamos o médico para iniciar o tratamento, contei-lhe que havia comprado a passagem. Só não contei o quanto aquilo estava me custando interiormente.
Durante o doloroso tratamento, Izis e eu, que tentávamos manter a mamãe imóvel para não dar nada errado no procedimento, tentávamos distraí-la. Em um momento qualquer, depois de uma reclamação da mamãe, eu brinquei e disse que ela estava sendo mole. Que se ela pedalasse, saberia que quando dói é porque o "sacrifício" está valendo a pena.
Ela resmungou algo e Izis brincou: - Essa sua filha tem problemas...
Mamãe disse: - muitos! Eu tive que rir.
No final do procedimento, ela estava muito cansada. Me despedi e fui embora.
Quando voltei, no dia seguinte, ela falava pouco. Dormia muito. Meu coração me dizia que ela não voltaria para nós.
Liguei para todos e pedi que fossem vê-la. Incluindo meu pai - que lhe devia algumas desculpas. E se fosse para fazer, que o fizesse logo.

Na minha cabeça passava um filme estranho. Quando eu saí de férias, em junho, ela se queixava de pressão alta. Durante minha viagem, mandei vídeos e fotos para ela. sempre dizendo que queria que ela estivesse ali.
Ela não era de carinhos, nem de abraços ou palavras afetuosas. Mas, umas duas vezes, respondeu às minhas mensagens dizendo que sentia saudades dela, com um "Eu também".
Meu Deus! Foi a glória. Ela nunca havia dito isso para mim... Eu, hein!

Por fim, estive com ela na noite de quinta-feira. dois dias depois do tratamento. E ela não tinha acordado. Foi a pior noite da minha vida...
Conversei com ela a noite toda. Pedi perdão por todas as minhas falhas. Não que não tivesse pedido desculpas antes. Eu sempre pedia, pois eu sempre fiz merda atrás de merda...
Nossa última noite foi um monólogo. Mas eu sei que a alma dela me ouvia. E espero que ela saiba que, mesmo não tendo sido uma filha perfeita, pelo contrário, eu sempre a amei mais que tudo na vida.
Não tivemos muito tempo juntas. Fui obrigada a viver longe dela muito cedo. Ela não falava sobre isso, mas tenho certeza que a decisão de me enviar para longe, não foi dela. Mas quando voltei, com minha criaturinha linda, nos braços, ela me acolheu e me ajudou a cuidar do Matheus. Sem julgar ou reclamar. Eu precisava trabalhar e estudar. E nisso, ela me apoiava.

Ela não teve uma vida fácil, nem confortável. Ela foi bem rígida comigo e com minha irmã Iná. Rigidez e nervosismo que foi abrandando com meus irmãos menores. Que bom.

Ela não deu seu último suspiro ao meu lado. Esperou eu ir em casa tomar banho para se despedir desse mundo.
Ela já havia se despedido de mim, durante a madrugada, quando chamei o médico para sedá-la e abrandar seu sofrimento. Olhei para ela, me desculpando, mas avisando que ela não sentiria mais dores físicas. Uma lágrima caiu do olho direito... Ela me dava Adeus naquele momento. Sua alma evoluída sabia que sua passagem terrena chegava ao fim. E assim, ela queria que fosse. Sem sofrer mais.
Sua vida já havia sido muito sofrida. Na sua despedida, ela precisava de paz...

Lamento, Mãe. Mas não me conformo de você ter ido embora antes de eu te entregar meu diploma de Doutora.
Não poderei levar o título comigo quando eu te encontrar, mas espero que você, onde quer que esteja, nos acompanhe e nos abençoe.

Estou com Saudades, Mãe. Por onde eu ande, lembro de você e do quanto eu te queria aqui.

Este natal vai ser duro. Mas estaremos juntos.
Em sua homenagem.
Essa é a sua família: de gente forte, briguenta e que amava sua presença física.

Te amo, Geni.

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