Entre a vergonha e a verdade

Texto publicado no Jornal de Brasília de hoje, 19/01/2011.
Pág - 3.

Era um mundo diferente, aquele dos anos 70. Os conflitos ideológicos estavam em toda parte, estimulados pela guerra fria entre comunistas e capitalistas, entre americanos e soviéticos. Homens e mulheres que pregavam a liberdade pegaram em armas por ela. Não nos cabe julgar se agiram certo ou errado. O fato é que, hoje, no Brasil, ainda restam 149 pessoas “sequestradas” pelas mãos opressoras do regime militar.

Logo após assumir o cargo, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, general José Elito Siqueira, afirmou que “a existência de desaparecidos políticos não deve ser motivo de vergonha, mas tratado como fato histórico”. Manter esses brasileiros “sequestrados” não é fato histórico algum. Todas as famílias precisam enterrar seus entes queridos. Reparar a dor apenas com dinheiro não dá dignidade a ninguém. O problema aqui não está somente nas palavras do general Elito, mas no pensamento da maior parte dos militares que participaram da época das trevas.

Umas das questões fundamentais – sobre a qual já tratei em meus livros, Operação Araguaia (que consolida 1.165 páginas de arquivos militares obtidos por mim) e Sem Vestígios – é justamente o paradeiro dos restos mortais destas 149 pessoas. A Guerrilha do Araguaia contabilizou 58 mortos e 11 presos, todos militantes do PCdoB. Muitos camponeses foram mortos (não se tem números exatos), outros torturados e muitos perderam casas e lavouras, incendiadas pelos militares para que os guerrilheiros não obtivessem alimentos.

Muitos militares da época ainda mantêm em suas gavetas e em suas memórias informações cruciais para se dar um final menos infeliz para este triste capítulo da nossa história. Não teremos um país ou um povo melhor condenando o episódio ao esquecimento. É a história que nos ensina como agir no futuro. As mesmas Forças Armadas que negam as barbáries cometidas nos anos de exceção sentem-se orgulhosas em possuir o melhor batalhão de selva do mundo, cuja expertise foi adquirida, em parte, nos enfrentamentos contra a guerrilha.

O que o Brasil precisa é levar os guerrilheiros mortos para casa, como nas guerras fazem os militares. Queremos esclarecimentos e o fim do uso dos mortos e desaparecidos como bandeira pseudo-ideológica. Nos oitos anos de governo Lula nada se fez pela causa, apesar de ter no ministério tantos atores da luta contra os militares (José Dirceu, Dilma Rousseff, Franklin Martins...).

A nossa nação precisa se sentir orgulhosa das Forças Armadas por seus méritos atuais e também vendo que seus integrantes não se opõem a resgatar seus conterrâneos apartados do convívio familiar pela morte. Não queremos ter vergonha, mas também não vamos esquecer que os militares cometeram crimes hediondos como tortura, degola e violação sexual de opositores da ditadura. E, tristemente, continuam sequestrando o direito de qualquer pessoa a enterrar seus mortos.

* Taís Morais - Jornalista, pós-graduada em Jornalismo Político, pesquisadora do período da ditadura militar e autora dos livros Operação Araguaia – os arquivos secretos da Guerrilha (Prêmio Jabuti 2006) e Sem Vestígios – revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira (indicado ao Jabuti em 2009)

Um comentário:

  1. Eu fico imaginando o que os grandes generais e sua trupe, guardam na memória. Será que dormem? devem dormir. Esse País, infelizmente, não têm memória...
    lindissimo texto, forte e verdadeiro.
    bjs, linda

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